Abayê foi um dos mais famosos amoraím do Talmude Babilônio. Seu verdadeiro nome era Nachmani; “Abayê” era apelido de infância. Órfão, não conheceu nenhum de seus pais.’ Abayê foi criado pelo irmão de seu pai, Rabá bar (filho de) Nachmani, um dos maiores amoraím babilônios. Como seu tio não quis chamar o menino pelo nome do pai, chamou-o de “Abayê” – “paizinho”. Com o passar do tempo, o “Nachmani” foi praticamente esquecido. Com exceção de algumas referências de seu colega Ravá (Shabat 33a, 74a; Nedarim 54b; e outros lugares), a maioria das pessoas o tratou pelo nome que seu tio lhe havia dado.
A vida de Abayê, o jovem órfão, nunca foi feliz. Seu tio Rabá, embora maior sábio da época e diretor de uma yeshiva, era muito pobre, e em sua casa realmente se passava fome (Eruvin 68a; Moed Katan 28a; Meguilá 7b; Guitin 37b). Abayê conta que uma vez foi convidado para jantar na casa de Mari bar Mar, um parente do Exilarca, depois de ele já ter comido na casa do tio. Foi servida uma refeição. Quando ele sentou e comeu tudo que punham à sua frente, descobriu a correção do dito (Meguilá 7b): “O pobre está com fome e não sabe disso.” Mesmo após a morte prematura de seu tio, quando Abayê estava por sua própria conta e era personagem importante no estudo da Torá, as circunstâncias continuaram precárias.
A vida de Abayê girou em três órbitas. A primeira, foi o relacionamento com seu tio e professor preeminente. Embora o Talmud não apresente muitas descrições íntimas, parece que a ligação entre Abayê e Rabá, que foi como um pai para ele, era de grande amor e mútua estima. Mas o tio era tão reverenciado por ele que (na presença dele ou não) ele nunca se dirigiu a ele usando seu próprio nome, e sim, apenas, “Mar” – isto é, “senhor”. E é provavelmente a mulher de Rav que Abayê frequentemente está citando quando diz “Mamãe me disse” (Eruvin 29b, 66b, 133b, 134a, e outros lugares). Ela é a fonte de muitos ditos populares que aparecem no Talmud: contos sobre milagres, histórias a respeito de diabos, remédios e medicações. Assim, apesar da pobreza e das atribulações, o círculo familiar de Rabá, a mulher de Rabá e Abaiê, era muito estreito. Esta foi uma das esferas da vida de Abaiê.
A segunda, foi o relacionamento com seu outro mestre, Rav Yossef, que era rival de Rabá, seu colega e parceiro na halachá. A relação de Abayê com o Rav Yossef era muito diferente da que tinha com Rabá. Com relação a Rabá, como dissemos, ele tinha respeito e admiração ilimitados, embora quanto ao estudo do Talmud nem sempre aceitasse as declarações de Rabá. Houve vezes em que as questionava ou até mesmo refutava. Seu relacionamento com seu outro professor, o rav Yossef, foi mais complexo.
O rav Yossef era muito diferente de Rabá; sua personalidade era mais amena, e ele empregava outro método de estudo. Enquanto Ravá era conhecido como “quem erradica montanhas”, o rav Yossef era chamado de “Sinai” – isto é, alguém que mantém tradições e é extraordinariamente erudito. Assim, embora Abayê fosse aluno do rav Yossef, era um desses estudantes muito próximos, que estimula o pensamento de seu professor e frequentemente faz perguntas e levanta objeções. Com o rav Yossef, Abayê não era somente um receptor passivo, mas também oferecia aos outros seu acervo. Além do mais, no final de sua vida, o rav Yossef ficou cego e padeceu de prolongada enfermidade, que resultou em perda parcial da memória. Naqueles anos ele se valeu em grande medida de Abayê, que continuava e frequentemente completava suas declarações. O rav Yossef estava ciente de sua doença, e aceitava as afirmações de Abayê com boa vontade.
A geração posterior a Rabá e ao Rav Yossef pode, sem dúvida, ser chamada de “a geração de Abayê e de Rava”. Esta dupla foi uma das mais famosas no Talmud, e suas disputas conhecidas como Chavaiot deabaiê veravá – foram consideradas pelas gerações subsequentes como a essência do Talmud. De fato, de muitas maneiras essas controvérsias constituem o âmago da discussão talmúdica, já que tratam de praticamente todas as questões que aparecem no Talmud.
Abayé, também, enxergava os mesmos problemas. Mas, diferentemente de Ravá, não tenta conciliar contradições. Para ele, cada questão legal é uma entidade em si mesma, e as regras haláchicas são definições autônomas quase perfeitas. Abayê não se preocupa com os problemas práticos e teóricos criados por essa abordagem. Deixa para os outros todas as questões de lógica legal e implicações sociais, porque – como cohen (sacerdote) – está interessado exclusivamente em preservar princípios básicos em sua forma mais pura e cristalina. Por este motivo, Abayê está disposto a aceitar coisas que outros eruditos consideram inaceitáveis, como variações na leitura de textos, discrepâncias na abordagem de um indivíduo ou inconsistência em posições quanto à halachá. Porque ele percebe em cada instância uma entidade independente, e não tem o menor interesse em criar uma visão de mundo coerente e abrangente.
O relacionamento entre Abayê e Ravá é caracterizado por uma profunda afinidade pessoal, apesar da vasta diferença na maneira de ver. Isso transparece claramente de suas vidas pessoais, de seus retratos como traçados no Talmud, e da Torá que eles legaram às gerações subsequentes. Foram amigos de infância e estudaram com os mesmos acadêmicos.
Abayê e Ravá, assim como as casas de estudo que dirigiram, nunca dissentiram em questões pessoais, mas sempre em relação a princípios; as disputas tiveram origem em profundas diferenças de índole e filosóficas. Abayê, o homem “desafortunado e sábio” cujas regras geralmente não foram aceitas como halachá, é, não obstante, um formidável participante na dialética haláchica ao longo das gerações, e, juntamente com Ravá, é um dos dois pilares sobre os quais se assenta o Talmud.