Espiritualidade Perigosa? A Morte de Nadav e Avihú na Parashat Shemini

A Parashat Shemini (Vayikrá 9–11) narra um dos momentos mais impactantes da Torá: a morte repentina de Nadav e Avihú, filhos de Aharon, logo após oferecerem “um fogo estranho perante o Eterno” (Vayikrá 10:1). Esse episódio, embora envolto em mistério, carrega lições espirituais profundas sobre os limites do entusiasmo religioso, a santidade do serviço sagrado e o caminho da verdadeira espiritualidade.

“E os filhos de Aharon, Nadav e Avihú, tomaram cada um o seu incensário, e puseram fogo nele, e colocaram incenso sobre ele, e ofereceram perante o Eterno fogo estranho, que Ele não lhes ordenara. E saiu fogo de diante do Eterno e os consumiu, e morreram perante o Eterno.”

(Vayikrá 10:1-2)

 

Rashi, o principal comentarista da Torá, traz várias explicações para o que exatamente constituiu o erro dos dois irmãos. Segundo ele:

“Ofereceram um fogo que não lhes fora ordenado – ensina que entraram no Santuário embriagados” (Rashi sobre Vayikrá 10:2, com base em Torat Kohanim e Eruvin 63a).

 

Rashi baseia-se também no fato de que, logo após esse incidente, Deus ordena aos Cohanim que não entrem embriagados no serviço (Vayikrá 10:8–11), sugerindo que esse foi o motivo oculto da tragédia.

Além disso, segundo Rashi, Nadav e Avihú tomaram a iniciativa espiritual sem consultar Moshé ou Aharon, o que revela uma quebra na hierarquia e submissão espiritual. Ou seja, o desejo deles de se conectar com Deus era genuíno — mas não disciplinado pela halachá e pela ordem divina.

 

O Midrash Sifra, atribuído a Rabi Eliezer, ensina:

“Eles morreram porque decidiram uma halachá perante Moshé, seu mestre” (Sifra, Shemini, Mekhilta de Rabi Yishmael).

Rabi Eliezer vai além: não foi a intenção que os condenou, mas o orgulho espiritual de tomar decisões por si mesmos, sem submeter-se à autoridade de Moshé Rabeinu. Esse orgulho, mesmo que envolto em espiritualidade, é fatal quando se trata da presença divina.

Outros Midrashim (como Vayikrá Rabbah 20:8) completam o quadro, mostrando que os irmãos se aproximaram de Hashem com uma chama interior tão intensa que suas almas simplesmente se desconectaram do corpo físico — eles “foram consumidos pelo amor divino”. Essa ideia mística sugere que sua morte não foi castigo, mas consequência de uma elevação espiritual sem contenção.

O Zohar (Acharei Mot, 44a) chega a declarar: “Eles morreram pela proximidade com Deus”.

Ou seja, Nadav e Avihú almejavam tanto a intimidade divina que ultrapassaram os limites seguros do mundo material — um paralelo com o conceito cabalístico de “קלות הנפש” (kelot hanefesh), quando a alma anseia tanto pela luz divina que abandona o corpo.

Esse é o paradoxo da espiritualidade autêntica: quanto mais nos aproximamos de Deus, mais precisamos estar enraizados na disciplina, na halachá, no temor e no equilíbrio.

Zelo não é substituto para obediência e o  fervor espiritual sem submissão à Torah pode se tornar perigoso. Nadav e Avihú nos ensinam que até o mais nobre desejo deve ser canalizado pela estrutura que Deus estabeleceu.

Espiritualidade sem humildade pode levar à queda a “autonomia espiritual” que ignora o mestrado e a tradição pode levar, metaforicamente, a uma “morte espiritual”.

 

Aharon, silencioso diante da tragédia (Vayikrá 10:3), torna-se símbolo do equilíbrio: espiritualidade profunda unida a uma aceitação silenciosa e reverente da vontade de Deus.

 

A história de Nadav e Avihú não é uma condenação ao entusiasmo religioso, mas um alerta: o serviço divino exige contenção, reverência e ordem. Tanto Rashi quanto Rabi Eliezer ensinam que a espiritualidade verdadeira não é apenas fogo — é fogo domado, canalizado, elevado pela halachá e tradição.

 

Que sejamos inspirados a buscar a Presença Divina com fervor — mas sempre pela via sagrada que o Eterno nos revelou por meio da Torah.

 

(D’vorah Anavá)

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