Jejum 9 de AV
Memórias de Dor e Luto

Tishá b’Av – o nono dia do mês hebraico de Menachem Av – é considerado a data mais triste no calendário judaico. Ao longo da história do Povo de Israel, uma série de desastres nacionais ocorreram no dia 9 de Av, tornando-o símbolo de luto nacional judaico. As orações de lamentação de Tishá b’Av não apenas relembram os eventos trágicos que aconteceram nessa data, mas também o sofrimento coletivo do Povo Judeu ao longo de seu exílio.

O luto em Tishá b’Av tem como foco a destruição do Primeiro e do Segundo Templos Sagrados de Jerusalém. O primeiro foi destruído pelo rei babilônico Nabucodonosor II, em 586 a.E.C, durante sua conquista de Jerusalém. De acordo com o Talmud, a destruição do Templo teve início no 9º dia de Av e continuou até o 10º dia. O Segundo Templo Sagrado, construído sob a liderança de Ezra e Nechemia, foi destruído pelo Império Romano em 9 de Av do ano 70 E.C.

A perda do nosso Templo Sagrado simboliza o subsequente exílio do Povo Judeu e todos os sofrimentos que se seguiram: opressão, perseguição, expulsões, a Inquisição e os pogroms. Essa sequência de tragédias culminou com o Holocausto – o extermínio sistemático de mais de seis milhões de judeus, o que equivalia a dois terços da população judaica europeia – promovido pela Alemanha Nazista.

Não se trata, portanto, de um evento isolado nas crônicas dos sofrimentos do Povo Judeu. Pelo contrário, constitui a chave fundamental de todas as tribulações de nosso povo. Muitas pessoas questionam a razão pela qual observamos Tishá b’Av – o único dia no calendário judaico, além de Yom Kipur, em que jejuamos por mais de 24 horas – em memória de um evento que, por mais trágico que tenha sido, ocorreu há quase dois mil anos. Uma das respostas é que, em Tishá b’Av, não lamentamos apenas um evento isolado – a destruição do Templo Sagrado, mas sim, as consequências de sua perda que têm reverberado ao longo da história.

 

A importância central do Templo Sagrado

Menos de um ano após o êxodo do Egito, D’us instruiu Moshé Rabenu a construir o Mishkan (Tabernáculo), que funcionaria como a Casa de D’us na Terra. O Mishkan foi o precursor do Beit HaMikdash – o Templo Sagrado de Jerusalém, erguido pelo Rei Salomão, filho do Rei David. A importância central do Templo Sagrado só pode ser plenamente apreciada ao se estudar a lista de Mitzvot (Mandamentos da Torá) compiladas por Maimônides (o Rambam). Dos 613 Mandamentos da Torá, menos da metade são praticáveis na ausência do Beit HaMikdash. Com a sua destruição, muitos aspectos fundamentais do Judaísmo foram afetados – não somente nas atividades diretamente associadas ao Templo e aos rituais lá realizados, mas também numa ampla gama de Mandamentos da Torá indiretamente ligados ao mesmo.

A devastação do Templo Sagrado de Jerusalém despojou os judeus do pilar fundamental em torno do qual orbitava sua vida. De fato, o início do exílio do Povo de Israel está intrinsecamente ligado à queda do Templo. Como o Mishkan (Tabernáculo) e, posteriormente, o Beit HaMikdash serviam, em termos metafóricos, como a habitação terrestre de D’us, a destruição do Templo é associada ao “exílio da Shechiná” (a Presença Divina). A partir de então, D’us começou a ocultar Sua Presença de forma ainda mais profunda. A humanidade, consequentemente, enfrentaria os impactos da destruição da Morada Divina na Terra. E já que a noção de tempo não se aplica a D’us Infinito – “pois para Ti mil anos são como o ontem que passou” (Salmo 90:4), os efeitos mais profundos da perda do Templo Sagrado se desdobraram quase dois milênios mais tarde. Não só o Povo Judeu, mas toda a humanidade arcaria com um custo imenso pela destruição de Jerusalém – a Cidade de D’us – e, em especial, pelo seu local mais sagrado – o Beit HaMikdash.

 

O propósito do Templo Sagrado

O Pirkei Avot, um dos tratados da Mishná, ensina: “Shimon HaTzadik era um dos remanescentes da Grande Assembleia. Ele costumava dizer: ‘O mundo se sustenta em três pilares: na Torá, no serviço (a D’us) e nas boas ações’ ” (Avot 1:2).

O serviço a D’us – um dos alicerces que sustentam o mundo – se manifestava por meio dos sacrifícios realizados pelos Cohanim no Tabernáculo e, mais tarde, no Templo Sagrado de Jerusalém. Nossos Sábios ensinam que, após a destruição do Beit HaMikdash, as orações passaram a suplantar os efeitos espirituais das oferendas do Templo. Esse ensinamento se fundamenta nas palavras do profeta Hoshea, que declarou: “Retorne ao Eterno. Diga a Ele: Perdoe toda iniquidade e aceite o bem, e substituiremos nossos lábios pelos touros” (Hoshea 14:3).

O fato da oração se destinar a substituir o serviço que anteriormente era desempenhado no Templo Sagrado realça a relevância fundamental dos sacrifícios e oferendas. Embora seja verdade que o que D’us mais almeja é a obediência, e não o sacrifício de touros (Samuel I, 15:22), e que o Senhor de Tudo, que tudo cria e detém, não necessita os presentes do homem (Salmo 50), a Torá esclarece que as oferendas levadas ao Templo Sagrado se constituíam em uma fonte de bênção e resguardo para o Povo Judeu.

No entanto, esses sacrifícios no Templo não apenas beneficiavam o Povo de Israel, mas também todas as nações do mundo. O Talmudnos ensina (Talmud Bavli, Sucá 55b): “Rabi Elazar afirmou: ‘Os 70 touros que eram sacrificados como oferendas suplementares durante os sete dias de Sucot correspondiam às 70 nações do mundo’ ”. Em reação a essa afirmação, Rabi Yochanan, um dos eminentes mestres do Talmud, lamentou: “Que grande perda para as nações do mundo que perderam algo e não sabem o que perderam. Quando o Templo estava de pé, os 70 touros sacrificados no altar durante a festa de Sucot serviam como expiação por elas. E agora, com o Templo em ruínas, quem irá propiciar a expiação pelas nações do mundo?”

Esses 70 touros sacrificados no Templo Sagrado durante a festa de Sucot representavam os 70 povos originais do mundo, enumerados na Torá, descendentes dos filhos de Noé e progenitores de todos os que hoje existem. Assim sendo, o Povo de Israel oferecia esses sacrifícios tanto como expiação por esses povos quanto como oração pelo seu bem-estar, juntamente com a paz e a harmonia universais entre os mesmos.

O Midrash ensina: “Durante a festa de Sucot, (o Povo de) Israel oferece 70 touros em nome das 70 nações. (O Povo de) Israel diz: Mestre do Universo, eis que oferecemos a Ti 70 touros em nome desses povos e eles deveriam nos amar. Em vez disso, ‘no lugar do meu amor, eles me odeiam’ (Salmos 109:5). Disse Rabi Yehoshua ben Levi: ‘Se as nações do mundo soubessem o valor do Templo para elas, o teriam cercado com uma fortaleza para protegê-lo. Pois ele era de maior valor para elas do que para Israel [em vez disso, elas o destruíram]’” (Midrash, Bamidbar Rabá 1:3).

As nações do mundo podem não ter tido conhecimento disso, mas o Templo Sagrado de Jerusalém – e os sacrifícios lá oferecidos – traziam proteção, bênção e salvação para o mundo todo. Por outro lado, quando o Templo foi destruído, trouxe consigo destruição e muito sofrimento para todos. Como veremos a seguir, a data de Tishá b’Av foi crucial não apenas para o Povo Judeu, mas também para toda a humanidade, e os efeitos da ausência do Templo permanecem até hoje.

 

A origem de Tishá b’Av

Uma questão central: Como o 9º dia de Av se tornou um dia de calamidade para o Povo de Israel? Encontramos a resposta no quarto livro da Torá, Números (Bamidbar), no famoso relato dos Doze Espiões que Moshé enviou à Terra Prometida. Após 40 dias, os espiões retornam e apenas dois deles, Yehoshua bin Nun (sucessor de Moshê) e Calev ben Yefuneh, trazem um relatório favorável. Os outros dez espiões falam negativamente sobre a Terra de Israel, dizendo aos Filhos de Israel que, apesar da promessa de D’us, eles seriam incapazes de conquistá-la e pereceriam nas mãos dos habitantes locais. O relatório dos dez espiões fez com que os Filhos de Israel mergulhassem no desespero: “E toda a congregação levantou a voz e chorou, e o povo chorou naquela noite” (Números 14:1).

O Talmud afirma: “Rabba disse em nome de Rabi Yochanan: Aquela noite foi a noite do 9o de Av. O Santo, Bendito é Ele, disse-lhes: Vocês choraram desnecessariamente (naquela noite), e Eu (portanto) estabelecerei para vocês (uma verdadeira tragédia sobre a qual haverá) pranto em (gerações futuras)” (Talmud Bavli, Ta’anit 29a).

O choro do Povo Judeu, naquela noite de Tishá b’Av, demonstrou uma falta de confiança em D’us e uma falta de fé em Sua promessa de lhes dar a Terra de Israel. Como resultado desse episódio, o 9º dia do mês hebraico de Av foi estabelecido como uma data de grande infortúnio no calendário judaico.

De fato, no decorrer da história, ocorreram vários eventos significativos com consequências trágicas, de longo alcance, para o Povo Judeu em Tishá b’Av. O mais impactante foi, como discutido anteriormente, a queda dos dois Templos Sagrados. No entanto, ao longo dos milênios, outras catástrofes nacionais ocorreram nessa mesma data. Algumas décadas após a queda do Segundo Templo Sagrado, em Tishá b’Av do ano 135 E.C., os romanos esmagaram a revolta liderada por Bar Kochba, destruindo a cidade de Betar e matando quase 600 mil civis judeus. A queda de Betar, que foi o último bastião da revolta de Bar Kochba, marcou a perda da independência judaica para os romanos. Além disso, após essa revolta, o governador romano da Terra de Israel, o malévolo Quintus Tineius Rufus (conhecido no Talmud como Turnus Rufus), ordenou, por decreto do Imperador Adriano, que fosse arado o local do Templo Sagrado de Jerusalém.

Várias outras tragédias que afetaram o Povo Judeu ocorreram no dia 9 ou 10 de Av, as datas em que o Templo foi destruído e queimado, respectivamente. Em 18 de julho de 1290 (9 de Av), os judeus foram expulsos da Inglaterra, e em 22 de julho de 1306 (10 de Av), da França. A expulsão dos judeus da Espanha em 1492 também ocorreu em Tishá b’Av.

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